domingo, 23 de novembro de 2014

A geração do entretenimento

Artigo publicado originalmente no jornal A Batalha.

Se tivesse que escolher uma palavra para descrever a minha geração não teria grande dificuldade: caracterizá-la-ia como a geração do “entretenimento”.

O entretenimento, quando não é moderado, tende a tornar-se numa verdadeira doença. Uma doença tão forte que nos remete para o esquecimento pessoal e que nos impede de viver a vida real. Estamos entretidos quando partilhamos estados e comentamos fotografias no facebook, instagram e twitter. Estamos entretidos quando nos enterramos no sofá a devorar séries, novelas e filmes. Estamos entretidos quando jogamos incessantemente candy crush e 2048. Tudo são formas de passar o tempo e de não nos encontrarmos connosco próprios. É incómodo reconhecê-lo? Claro que é. Todos nós o fazemos, uns mais, outros menos.

O problema da geração do entretenimento é que acaba por não ter tempo, paciência ou (até) capacidade para o mais básico dos exercícios: pensar em si mesmo (i.e., para o auto-conhecimento). Os meus amigos costumam dizer-me que ficam atrapalhados quando, em entrevistas de trabalho, os interrogam acerca dos próprios defeitos. Aquilo que deveria ser uma pergunta elementar tornou-se, afinal, numa questão assaz complexa e ousada, ao nível de um verdadeiro quebra-cabeças. É uma daquelas perguntas incómodas, que nos obriga a mergulhar numa dimensão mais intima e profunda do nosso ser e que, provavelmente, nunca tivemos oportunidade de discutir com o nosso círculo de amigos.

Foi nesta ausência de reflexão que Hannah Arendt encontrou, no século passado, as raízes daquilo a que chamou “banalidade do mal”. Com este conceito, Arendt reportava-se àquelas pessoas que haviam prescindido da sua capacidade de pensar e reflectir e que, consequentemente, se tornaram cúmplices do Holocausto. Note-se que o que despertou a atenção da autora judia não foram as mentes perversas e ideologicamente comprometidas, capazes de praticar o “mal radical”, mas as pessoas vulgares ou normais; aquelas que, em circunstâncias normais, seriam incapazes de cometer um crime mas que, em virtude da ausência de reflexão, se tornaram coniventes com o regime nazi.

O entretenimento é, nos nossos dias, uma porta aberta para a banalidade do mal. O mesmo é dizer: uma porta aberta para acolhermos acriticamente e praticarmos tudo aquilo que nos é apresentado como sendo normal mas que, ao fim e ao cabo, pode ser moralmente condenável. A nossa geração não está a ser - claro está - conivente com um regime opressor e totalitário; mas está a sê-lo com uma mentalidade enraizada de instrumentalização e coisificação da pessoa humana. O pretexto (amiúde utilizado) do “mas ele até é boa pessoa…” tornou-se recorrente e apenas demonstra que cometemos erros não porque somos más pessoas mas porque não medimos atempadamente as consequências do que fazemos.

A conclusão é por demais evidente: o mal triunfa na ausência de reflexão. Está aqui o grande desafio da geração do entretenimento.

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